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Justiça do Trabalho de São Paulo investiga indícios de litigância predatória em ações
Decisões da Justiça Trabalhista paulista, de primeira e segunda instâncias, têm registrado indícios de litigância predatória por escritórios que ingressam com ações extremamente parecidas, com pedidos iguais e contra as mesmas empresas.
Segundo o Tribunal Regional do Trabalho (TRT) de São Paulo, desde agosto do ano passado, 81 casos de bancas de advocacia diferentes foram enviados para averiguação por uma Comissão de Inteligência. Ela investiga indícios de abuso e repassa os dados à Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e ao Ministério Público.
Em um caso recente, a 3ª Vara do Trabalho de Guarulhos (SP) identificou uma série de processos patrocinados por um único advogado, todos contra a mesma empresa e seguindo idênticos modelos de pedidos. O caso foi enviado para a comissão para averiguação (processo nº 1001054-96.2024.5.02.0313).
A sentença se deu em um processo contra a companhia aérea TAM (hoje Latam), em nome de um piloto de aeronave, que recebia um salário de R$ 26,6 mil mensais. A ação pedia a integração de gratificações, além do pagamento de diferenças salariais, de horas extras, de adicional noturno, intervalo intrajornada descumprido, adicional de periculosidade e indenização por danos morais, entre outros.
O problema é que, com base no valor do salário, dos pedidos feitos e do tempo que ele trabalhou na empresa, de 2012 a 2023, a verba devida deveria ficar muito acima dos R$ 59 mil pedidos na ação. O juiz Leonardo Grizagoridis da Silva, intimou o trabalhador a atualizar esse valor e a apresentar as declarações de Imposto de Renda dos últimos três anos para avaliar hipossuficiência e concessão de gratuidade de justiça, o que não aconteceu.
Na sentença, o magistrado destaca que essa postura é repetida em outros processos do mesmo escritório, "com pedidos idênticos, tendo a indicação dos mesmos valores irrisórios e aleatórios, assim como o requerimento de gratuidade de Justiça".
Ele levantou outros seis processos em que a situação se repetiu e conclui que, em todos eles, apenas um dos pedidos contidos na ação ultrapassaria o montante atribuído ao valor da causa.
A atenção do juiz com os detalhes fez a diferença, segundo o advogado da Latam, Luiz Antonio dos Santos Junior, do Veirano Advogados. “São decisões como essa que vão fazer com que as partes, advogados e seus clientes comecem a ter um pouco mais de responsabilidade na hora de litigar, e deixar de achar que não tem risco nenhum ao não atender às determinações do juiz no processo",avalia.
Em outro processo, a juíza Carolina Teixeira Corsini, da 5ª Vara do Trabalho de Guarulhos, chegou a condenar o advogado da causa por litigância de má-fé. Ela expôs a abordagem do advogado a uma trabalhadora para pedir na Justiça o pagamento de adicional de insalubridade (processo nº 1001531-58.2024.5.02.0010).
Na audiência, o advogado exibiu imagem do local de trabalho, que era um balcão com barras de chocolate e máquina de café. Quando questionada a respeito da ação, a trabalhadora disse ter sido procurada pelo escritório, que teria falado que ela tinha direitos a receber na Justiça.
A magistrada identificou que esse advogado ajuizou 1.502 ações em diversas cidades, em apenas seis meses. “Tal se revela um número para além de expressivo para um único advogado e com dimensão territorial que favorece a conclusão acerca da prática de captação via WhatsApp, como reportado por alguns reclamantes”, disse na sentença.
Muitas decisões reconhecem essa prática, mas não aplicam penalidades”
— Zilma Ribeiro
Assim, Carolina condenou o advogado a pagar o equivalente a 10% do valor da causa, igual montante de honorários de sucumbência e custas processuais de R$ 250.
Integrante da Comissão de Inteligência do TRT-SP que faz as averiguações dos processos com indícios de litigância predatória, o desembargador Thomaz Moreira Werneck explica que as denúncias de litigância abusiva podem ser feitas por um formulário no site do tribunal, e que unidades de apoio distribuem os casos para investigação.
O procedimento interno busca ouvir as partes envolvidas e resulta em um parecer definitivo, que é encaminhado para todos os juízes, além da OAB e do Ministério Público, para que sejam tomadas providências judiciais, quando for o caso. Nomeado em janeiro deste ano, o grupo de trabalho responsável por esse procedimento ainda não deu nenhum parecer definitivo.
Segundo Werneck, foi preciso adaptar as recomendações do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) a respeito do tema (Recomendação nº 59, de 2024, e nº 127, de 2022) para aplicação na realidade da Justiça do Trabalho. “Muitos aspectos relacionados à repetitividade na Justiça comum não se aplicam à trabalhista”, diz. “Também enquadramos a litigância predatória reversa, quando as empresas não cumprem a legislação e protelam o cumprimento das decisões judiciais”.
A OAB de São Paulo não tem dados consolidados sobre o assunto. Contudo, no dia 2, instaurou a Coordenadoria de Processamento de Representação e Processo Disciplinar, que acompanhará representações ou processos disciplinares envolvendo suposta litigância abusiva.
A sistematização do reconhecimento de condutas abusivas poderá viabilizar a punição, de acordo com a advogada Zilma Ribeiro, sócia do escritório Lopes Muniz Advogados. Ela obteve sentenças, nos anos de 2022 e 2023, que apontaram condutas ilegais de bancas de advocacia contra uma mesma empresa.
Em um dos processos, o juiz Victor Goes de Araujo Cohim Silva anotou que se tratava de “ação reiteradamente distribuída pelo mesmo escritório, sempre nos mesmos termos, com testemunhas que invariavelmente são autoras de reclamações trabalhistas patrocinadas também pelo mesmo escritório” (processo nº 1000018-92.2020.5.02.0043).
Em outro, a 3ª Turma do TRT-SP apontou indícios de fraude a partir de um “padrão nos pedidos de reconhecimento da jornada habitualmente trabalhada de segunda a sexta-feira, das 05h30 às 20h, com prorrogação até as 22h por cinco dias no mês e com intervalo reduzido, a mesma jornada indicada na petição inicial” (processo nº 1000859-08.2021.5.02.0058)
Porém, segundo Zilma, os magistrados ainda são cautelosos na qualificação de condutas como litigância predatória. “Já há muitas decisões reconhecendo essa prática, mas nem todas aplicam penalidades”, afirma. “Espera-se que, com o aprimoramento da identificação dessas condutas, os juízes passem a penalizá-las”, acrescenta.
Hugo Luiz Schiavo, sócio do escritório A. C. Burlamaqui Consultores, destaca que é dever ético desestimular ações do tipo, que transformam a advocacia não apenas em produto, mas “commodity”. “Trata-se do estado da arte da mercantilização da profissão, o que tem sido devidamente rechaçado pelo CNJ e o Poder Judiciário”, afirma.
FONTE: VALOR ECONÔMICO
Por Luiza Calegari — De São Paulo
24/06/2025 05h01